O filho mais velho do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) é acusado de liderar uma organização criminosa
A corte responsável por analisar as acusações contra o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) tem levado em média mais de nove meses para decidir se aceita ou não uma denúncia oferecida pelo Ministério Público contra pessoas com foro especial.
Formado por 25 desembargadores, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro é composto, em sua maioria, por magistrados que atuam na área cível. O colegiado tem ao menos três denúncias há meses aguardando a análise -uma delas sobre “rachadinha”.
O órgão se tornou responsável pelo julgamento do senador após o Tribunal de Justiça fluminense entender que Flávio tinha direito ao foro especial destinado aos deputados estaduais, cargo que ocupava na época dos fatos investigados.
O filho mais velho do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) é acusado de liderar uma organização criminosa para o recolhimento de parte dos salários de ex-funcionários fantasmas de seu antigo gabinete na Assembleia Legislativa do Rio.
O operador financeiro desse esquema, segundo os investigadores, é o PM aposentado Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio na Assembleia fluminense e amigo do presidente há mais de 30 anos.
A quebra do sigilo bancário de Queiroz mostrou que, além de receber parte do salário de ex-funcionários de Flávio, ele e sua esposa pagaram R$ 89 mil em cheques entre 2011 e 2016 para a primeira-dama Michelle Bolsonaro.
A transação financeira nunca foi completamente esclarecida pelo presidente. Recentemente, ele disse que Queiroz também pagava contas pessoais suas -não informou com que recursos.
A investigação do Ministério Público do Rio identificou ao menos uma oportunidade em que o PM aposentado pagou, com dinheiro vivo, boletos da escola das filhas do senador. A Promotoria afirma ser dinheiro da “rachadinha”.
Pesquisa Datafolha realizada no início de dezembro mostra que 58% dos brasileiros considera o senador culpado no caso da “rachadinha”. Segundo a pesquisa, 11% o consideram inocente, e outros 31% não souberam responder.
Em uma live no último dia 31, o presidente Bolsonaro questionou a imparcialidade do Ministério Público do Rio.
“O que aconteceria, MP do Rio de Janeiro? Vocês aprofundariam a investigação ou mandariam o filho dessa autoridade para fora do Brasil e procurariam maneira de arquivar esse inquérito?”, disse.
“Caso hipotético, vamos deixar claro”, continuou. “Caso um filho de uma autoridade entrasse num inquérito da Polícia Civil do Rio e aí um delator tivesse falado que ele participava de tráfico internacional de drogas. O que aconteceria?”
Além de ser o responsável pelo controle das investigações contra deputados estaduais, o órgão especial também atua em crimes supostamente cometidos por magistrados, membros do Ministério Público, o vice-governador e secretários de estado.
As ações penais, porém, são raras no tribunal. O órgão tem em sua rotina a deliberação sobre ações contra atos do governador, análise de conflitos de competência na corte, arguição de impedimentos e suspeição, e assuntos administrativos.
A Folha localizou apenas oito denúncias já recebidas pelo colegiado –a assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça do Rio afirmou não ser possível fazer um levantamento específico sobre ações penais no órgão.
A acusação que demorou mais tempo para ser aceita também tinha forte carga política. Trata-se da denúncia contra o ex-procurador-geral de Justiça Cláudio Lopes, sob acusação de integrar o esquema de corrupção do ex-governador Sérgio Cabral.
O tribunal levou um ano e quatro meses para aceitar a denúncia contra os dois. Esse é um dos 34 processos a que Cabral responde nas investigações da Lava Jato.
A denúncia que tramitou de forma mais rápida foi uma das duas contra o procurador Elio Fischberg, acusado de falsificar um documento do Ministério Público do Rio para beneficiar o ex-deputado Eduardo Cunha. O órgão especial levou seis meses para transformá-lo em réu da acusação.
Essa foi uma das poucas ações penais concluídas no próprio órgão especial. O procurador foi condenado em março de 2013, cinco anos e dois meses após a denúncia ter sido aceita.
O caso de Fischberg tem uma coincidência com o de Flávio. O relator das ações contra o procurador também foi o desembargador Milton Fernandes. Ex-presidente do TJ-RJ e atuante em Câmara Cível, Fernandes é visto como um magistrado discreto.
Na primeira ação contra Fischberg, seu relatório pela aceitação da denúncia foi aprovado com apenas um voto contra. Ele pediu a condenação do procurador e de um advogado corréu, tendo apenas o primeiro sido punido –a maioria absolveu o segundo.
Nos últimos anos, o volume de denúncias oferecidas cresceu na corte. Além da ação contra Cabral e o ex-procurador-geral do estado, o MP-RJ também apresentou acusação contra o deputado estadual Márcio Pacheco (PSC) por supostamente comandar um esquema de “rachadinhas” em seu gabinete, num caso semelhante ao de Flávio.
A acusação feita em junho ainda não foi analisada pelos desembargadores –bem como os pedidos de busca e apreensão. Também estão pendentes de análise denúncia contra um juiz acusado de vender sentenças e um promotor supostamente envolvido com milicianos.
A denúncia contra Flávio tende a seguir demora semelhante. Fernandes ainda não notificou as defesas para se manifestarem sobre as acusações após mais de dois meses do oferecimento da acusação.
Interlocutores do magistrado afirmam que ele aguarda decisões do STF (Supremo Tribunal Federal) e do STJ (Superior Tribunal de Justiça) sobre o foro especial dado ao senador e a legalidade das provas obtidas para dar andamento.
O órgão especial é formado pelos 13 desembargadores mais antigos do tribunal (chamados de “membros natos”) e outros 12 eleitos entre os magistrados de segunda instância. Cinco desse segundo grupo são sempre os que venceram a eleição para a administração do tribunal: presidente, três vice-presidentes e o corregedor.
A demora na análise das denúncias se deve tanto ao número de magistrados envolvidos como na quantidade de sessões da corte. O grupo se reúne apenas uma vez por semana.
Advogados que já atuaram no tribunal relatam que o fato da maioria dos desembargadores atuar na área cível, as discussões criminais se alongam. Um dos profissionais ouvidos pela Folha afirmou que as dificuldades de tramitação no órgão especial são semelhantes à no Supremo.
Os ministros, porém, contam com o apoio de juízes auxiliares, se reúnem com mais frequência, e os debates envolvem a metade do número de magistrados do órgão especial. Além disso, o mandato dos 12 eleitos é de dois anos, podendo a formação da corte se alterar pela metade no curso da ação penal.
Entre os eleitos que assumem o posto em fevereiro está a desembargadora Marília de Castro Neves, condenada a indenizar a família da vereadora Marielle Franco por ofensas publicadas na internet.
Também foi eleito o desembargador José Carlos Maldonado de Carvalho, que integra o Tribunal Especial Misto que conduz o processo de impeachment do governador afastado Wilson Witzel (PSC).
Entre advogados, especula-se que a denúncia contra Flávio acirre o componente político das decisões do órgão especial. Para eles, os grupos de afinidade dentro do tribunal costumam se alinhar em casos como esses.
O ex-presidente do TJ-RJ Luiz Zveiter é visto como um dos mais influentes do tribunal. O presidente eleito do tribunal, Henrique Figueira, venceu a disputa interna após apoio do presidente do Supremo, Luiz Fux. Henrique é irmão do ex-deputado estadual João Pedro Figueira, que atualmente atua como advogado.
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro é origem de diversos ministros de cortes superiores. São egressos do tribunal, além de Fux, os ministros do STJ Antônio Saldanha Palheiro, Marco Aurélio Belizze e Luiz Felipe Salomão.