A LSN foi invocada nas últimas semanas para processar opositores do governo Jair Bolsonaro (sem partido) como o youtuber Felipe Neto
Em meio à escalada no uso da Lei de Segurança Nacional (LSN), o STF (Supremo Tribunal Federal) enfrenta uma pressão para que se posicione sobre a constitucionalidade do texto.
Congressistas, partidos políticos e organizações da sociedade civil têm se mobilizado para que a corte avalie a revogação ou a atualização da lei, que entrou em vigor em 1983, no período final da ditadura militar (1964-1985). O principal argumento é o de cerceamento à liberdade de expressão.
A LSN foi invocada nas últimas semanas para processar opositores do governo Jair Bolsonaro (sem partido) como o youtuber Felipe Neto. Também embasou o pedido para que o deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ) fosse preso, no mês passado.
A prisão do parlamentar, determinada pelo ministro do STF Alexandre de Moraes no âmbito do inquérito que investiga ataques ao Supremo, foi referendada pelos plenários da corte e da Câmara.
Neste fim de semana, o ministro Ricardo Lewandowski chamou a lei de “fóssil normativo” e defendeu que a corte avalie sua constitucionalidade.
“A Lei de Segurança Nacional foi editada antes da nova Constituição, da Constituição cidadã, da Constituição que traz na sua parte vestibular um alentadíssimo capítulo relativo sobre direitos e garantias fundamentais”, disse ele no sábado (20), durante transmissão ao vivo do Grupo Prerrogativas, formado por advogados e professores.
“O Supremo precisa dizer se esse fóssil normativo é ainda compatível com, não apenas a letra da Constituição, mas com o próprio espírito da Constituição. É um espectro que ainda está vagando no mundo jurídico e precisamos, quem sabe, exorcizá-lo ou colocá-lo na sua devida dimensão”, afirmou o magistrado.
Dois partidos, o PTB (da base do governo) e o PSB (da oposição), ingressaram com processos que questionam a norma. Ambos têm como relator o ministro Gilmar Mendes.
O PSOL anunciou que está preparando uma ação para solicitar à corte que interrompa o uso da lei “para fins incompatíveis com o texto da Constituição”. A legenda quer a anulação de dispositivos.
Na sexta-feira (19), a Defensoria Pública da União pediu que o STF tranque todos os inquéritos e ações abertos com base na LSN contra pessoas que criticaram Bolsonaro ou outros agentes públicos.
Partidos de oposição ao presidente na Câmara também reagiram e, no sábado, acionaram o Supremo contra o uso político da lei. Os autores pediram ainda o afastamento do ministro da Justiça, André Mendonça, que assinou pedidos de investigação contra detratores de Bolsonaro.
Parlamentares ouvidos pela Folha afirmam que a LSN está sendo usada para amedrontar opositores, em um movimento sem precedentes desde a redemocratização.
“O que vimos nos últimos episódios alusivos à aplicação dessa legislação são abusos e uma clara tentativa de intimidar adversários do presidente”, diz a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), líder do bloco Senado Independente (Cidadania/PDT/Rede/PSB).
“É fundamental que a corte assegure que a lei não possa ser usada para tolher a liberdade de expressão. O presidente precisa aprender a lidar com críticas pelo bem da nossa democracia”, completa.
A petição das legendas de oposição, protocolada pelo deputado José Guimarães (PT-CE), líder da minoria na Câmara, afirma que Mendonça está se utilizando do cargo “para direcionar a atuação da Polícia Federal, com o evidente fito de perseguir opositores e críticos da atual presidente”.
Ao sugerir o afastamento do titular da Justiça, o documento diz que têm ocorrido “fatos extremamente graves”, os quais exigem que “medidas urgentes sejam tomadas para coibir as ações do ministro, bem como responsabilizá-lo penal e administrativamente”.
Senadores e deputados prometem mais ações para os próximos dias, com a apresentação de projetos de lei para restringir o uso da LSN e novas abordagens no STF.
“Vamos tentar todos os meios legais para impedir novos abusos autoritários”, afirma o líder do PT no Senado, Paulo Rocha (PT-PA). “Há uma diferença imensa entre incitação ao crime, como foi o caso do deputado Daniel Silveira, e as livres manifestações de pensamento. Não vão nos intimidar utilizando instrumentos legítimos de forma ilegal.”
Em outra frente, o senador Cid Gomes (PDT-CE) prepara um projeto de lei para revogar a norma vigente e estabelecer novos critérios para crimes contra a ordem política e social e a democracia.
Cid é irmão do ex-ministro Ciro Gomes (PDT), que virou alvo de apuração da Polícia Federal sob a suspeita de crime contra a honra de Bolsonaro após criticá-lo. No caso do pré-candidato ao Planalto em 2022, o inquérito é baseado no Código Penal, não na LSN.
A revisão ou revogação da Lei de Segurança Nacional é defendida também por entidades da sociedade civil e representantes de diferentes setores, que têm insistido para que o Supremo e o Congresso se debrucem sobre a lei.
Na última sexta, um grupo de advogados e professores de direito que inclui Miguel Reale Júnior e Oscar Vilhena Vieira enviou a Gilmar Mendes e ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), um memorial (compilação de teses jurídicas) para embasar a reformulação da LSN.
O documento propõe que os trechos que ofendem o princípio da liberdade de expressão sejam considerados inconstitucionais, mas fiquem preservados aqueles que protegem as instituições do Estado democrático de Direito.
“Temos a chance histórica de assistir ao espetáculo republicano do triunfo do institucional sobre o pessoal, iluminado pela consagração do direito fundamental à liberdade de expressão”, dizem os autores.
A Comissão Arns, organização que monitora violações de direitos humanos, também discute o assunto para se posicionar. Em caráter individual, membros da entidade, como Vilhena, têm se manifestado pela revisão do texto.
A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), que também endossa a necessidade de atualização do texto, criou uma coordenação interna para acompanhar a questão.
O grupo vai avaliar propostas em debate no Congresso e eventualmente propor minuta atualizada de projeto de lei ou projeto substitutivo.
As associações ABJD, APD e AJD –que agregam juristas, advogados públicos e juízes pró-democracia–, além do Coletivo por um Ministério Público Transformador, também se mobilizaram.
Em conjunto, as organizações pediram ao STF para ingressarem como amicus curiae (amigo da corte) na ação apresentada pelo PSB e afirmaram que a lei está “sendo resgatada para perseguir e prender opositores políticos”.
O movimento Livres, que prega o ideário liberal e reúne parlamentares, políticos e economistas, também vai requisitar a condição de amicus curiae no mesmo processo.
“Defendemos que o assunto deva ser discutido pelo Congresso, onde estão os representantes eleitos, mas, como ação emergencial, entendemos que o STF deve decidir pela revogação da lei, até que um texto atualizado e compatível com a Constituição seja aprovado”, diz Magno Karl, diretor-executivo do Livres.
“Termos partidos tão diferentes quanto PTB e PSB entrando no STF contra a LSN exemplifica o quanto ela desagrada a militantes de esquerda e de direita”, acrescenta.
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública também tem cobrado do Supremo um posicionamento a respeito do “uso indiscriminado” da LSN.
“Uma lei anacrônica da ditadura, cujo foco é a defesa do Estado, e não da ordem social democrática, atenta contra a essência da Carta Magna”, diz o diretor-presidente da entidade, Renato Sérgio de Lima.
A deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP) faz críticas públicas há meses ao que considera banalização na aplicação da LSN. Para ela, que também é professora de direito da USP, a invocação do dispositivo só deveria ocorrer em casos efetivamente graves.
“Precisamos de um amplo debate. A discussão não deveria ser se a lei foi recebida pela Constituição ou não, mas se tem cabimento alguém ser investigado ou punido com fulcro nela, não importa se de esquerda ou de direita”, diz.
Para Janaina, uma das autoras do pedido de impeachment de Dilma Rousseff (PT), a LSN não poderia ser instrumento para constranger quem manifesta seu pensamento.
“O nosso problema é mais profundo. Parece que todas as instituições estão avessas a serem questionadas. Isso é muito ruim”, opina.
“Muito embora agora o ministro da Justiça venha fazendo requisições de instauração de inquéritos, quem começou com isso foi o Supremo. O pleno referendou investigações com base nessa lei. É algo assustador.”