As tratativas começaram ainda gestão de Evandro Leitão como presidente do parlamento cearense. A projeção é que o convênio para iniciar o estudo seja assinado em fevereiro
O litigio do Piauí contra o Ceará no Supremo Tribunal Federal (STF), em que o estado vizinho reivindica cerca de 3 mil quilômetros quadrados de uma área envolvendo 13 municípios cearenses, não é a única divergência sobre as divisas estaduais. Mas, se de um lado, há animosidade e será preciso uma decisão judicial para resolver a questão, as dúvidas em outro extremo do Ceará deve ser resolvidas em acordo.
Ceará e Pernambuco se organizam para iniciar um profundo estudo de campo para subsidiar uma proposta que deverá ser analisado pelas duas assembleias legislativas. E, em entendimento, a expectativa é que se converta em lei os pontos que definirão a divisa entre os estados.
Algumas informações técnicas já foram levantadas pelo Comitê de Estudos de Limites e Divisas Territoriais do Ceará (Celditec), vinculado à Assembleia Legislativa do Ceará (Alece). Os dados têm sido revisados com a entrada dos novos prefeitos para saber o que fato existe e quais equipamentos são administrados nas áreas da divisa.
O convênio deve envolver também a Agência Estadual de Planejamento e Pesquisas de Pernambuco (Condepe/Fidem) e o Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece). O acordo deverá ser firmado pelo atual presidente da Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), deputado Álvaro Porto (PSDB), e pelo presidente eleito da da Alece para o biênio 2025/2026, deputado Romeu Aldigueri (PDT).
O imbloglio
A 572,70 quilômetros de Fortaleza, parte dos moradores de Salitre vivem com a dúvida de saber onde moram de verdade. São pelo menos 15 anos com o questionamento, pois se identificam como cearenses, mas oficialmente estão no estado vizinho. A região leva o nome das famílias que moram na área, como Serra dos Nogueiras, dos Afonsos, dos Carlos, dos Gaudêncios, dos Felisminos e outros.
O então prefeito de Salitre, Dodó de Neoclides (PSB), na época da eleição presidencial, em 2022, recebeu a informação de que seções eleitorais dessa área seriam retiradas e deixariam de funcionar. Foi o estopim para tentar encontrar uma solução de definitiva.
O início de tudo é o que conta Heliomar Henis, que atuava como secretário de Administração na Prefeitura. “Em 2002, o Município ainda tinha os limites conforme já tinha sido medido há muitos anos, quando ainda era Campos Sales. Em 2007, quando o IBGE veio fazer a nova medição, errou o local de limite e adentrou no município de Salitre e, por consequente, no Estado do Ceará, em 4 quilômetros, onde a gente perdeu em toda a linha divisória do Município entrando esses quatro quilômetros”, apontou.
E seguiu: “Principalmente na Serra dos Nogueiras, onde a gente tem dois colégios, onde a gente tem uma quadra poliesportiva, praça pública, posto de saúde. Na Serra dos Felisminos, onde a gente tem também um colégio e diversas fábricas de farinha nessa área toda”.
Além de os equipamentos, feitos por Salitre, ficarem na conta de outro estado, o Município também seria prejudicado em questões econômicas. A região agrega grande parte da agricultura do Município, baseada no cultivo de mandioca. Além disso, população é critério de distribuição de recursos de transferências.
Diferentemente do Piauí, há cooperação entre Ceará e Pernambuco
Analista de Políticas Públicas do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece), Cleyber Nascimento de Medeiros ressalta a diferença sobre o caso envolvendo o Piauí, que é um litígio e que só deve ser findado com uma decisão judicial.
“Ambos reconhecem e respeitam os limites historicamente ocupados e administrados, adotando o critério jurídico do uti possidetis, que assegura a análise da situação administrativa histórica e do sentimento de pertencimento da população”, ressalta.
Ele também pondera existir “disposição” das autoridades pernambucanas de resolver o assunto sem processo judicial. “O litígio do Piauí já estava estabelecido na mente dos piauienses, não adiantava. Os pernambucanos, não. A primeira vez que nós contamos para eles, disseram: ‘Olha, a gente só quer o que é nosso’. Com o Piauí não, sempre teve um sentimento, a vontade (de ter) daquela Serra da Ibiapaba, a vontade de adentrar nessas áreas do Ceará. Sempre houve esse sentimento. Com Pernambuco, não. Foi (a conversa) tranquila, transparente, a gente trabalhando com muito critério, com muita responsabilidade e, acima de tudo, com muito grau de amadurecimento entre as duas casas”, destacou ainda.
Para o estudo, ele projeta a ida aos municípios que fazem a divisa para escutar a população. Se precisa matricular o filho na escola, para onde vai? Se precisa de assistência médica, onde procura atendimento? É, segundo ele, uma questão de cidadania. E depois que o estudo for concluído com Pernambuco, ele explica que o Comitê tem o desejo de fazer o mesmo com o Rio Grande do Norte.
Tudo que já é administrado por um estado deve ficar com ele
Diante a necessidade de mudar limites entre os municípios na divisa entre Ceará e Pernambuco, surge a pergunta: cearenses vão se tornar pernambucanos ou pernambucanos vão se tornar cearenses? A resposta é não. A intenção é que apenas se adeque as linhas para manter o que já se encontra na realidade. Se existem escolas, postos de saúde que, historicamente, são ligados a um estado, a administração irá permanecer com aquele estado.
Mudança
Estudo do Ipece confirmou ajustes na malha cartográfica utilizada pelo IBGE. Entre o Censo Demográfico de 2000 e a Contagem Populacional de 2007, houve alterações na representação cartográfica da divisa entre Ceará e Pernambuco. A área territorial impactada pela alteração nas divisas censitárias foi de aproximadamente 773 km², sendo 429 km² em Pernambuco e 344 km² no Ceará. E não foi apenas em Salitre, mas em outros cinco municípios cearenses e seis município de Pernambuco
Estruturas
O estudo apontou a existência de escolas do Ceará fora do limite estadual após a realização da mudança da divisa entre os anos de 2000 e 2007, especificamente no município de Salitre. O mesmo acontece com equipamentos de saúde. Foram mapeadas 28 localidades no trecho da divisa, todas vinculadas até aquele momento como sendo do Estado do Ceará. Do total, 21 passaram para Pernambuco no mapa do IBGE quando houve a alteração da divisa
Estados eram dividos por um “valadão”
Coordenador do Celditec, Luiz Carlos Mourão conta que esteve na área em Salitre que faz divisa com os municípios de Pernambuco. E apontou a importância de escutar a população para reconstruir questões históricas. Ele conta que as localidades eram divididas por um “valadão”, um grande buraco que foi cavado ainda no século passado, entre 1911 e 1915. Claro, com o tempo muito se foi perdendo, mas, com a ajuda da população, a história foi recuperada e o próprio “valadão” também. Cerca de 40% a 50% do local por onde passava essa vala já foi encontrado.
“Quando foi um determinado momento um cidadão resolveu fazer um buraco para dividir o Ceará e o Pernambuco. Fizeram uma vala, chamada Valadão. O IBGE descobriu isso em 2007. Ele (o instituto) disse que é essa vala que divide os estados e, a gente fazendo levantamento, nós vimos que realmente faz sentido o que dizem sobre essa vala”, disse.
“Com o tempo essas valas, porque lá é uma área muito agrícola, eles plantam muito mandioca, essas áreas que não são muito planas perpassaram essa questão das valas. Ficou imperceptível em campo essas vagas, mas nós começamos a procurar a história as pessoas mais antigas”, ressaltou.
O acordo também é esperado por Pernambuco
A “esperança” de que tudo se revolva com um acordo também alcança as autoridades do estado vizinho. No fim do ano passado, houve uma reunião da Comissão de Assuntos Municipais com representantes da Agência estadual de Planejamento e Pesquisas de Pernambuco.
A distribuição de recursos federais e estaduais foi um dos problemas apontados no encontro. “Em algumas situações, a terra pertence a um município, mas os serviços são ofertados por outro. Os valores também estão distorcidos: uma localidade acaba recebendo o que é devido à outra”, registrou o presidente da comissão, deputado Diogo Moraes (PSB).
Os parlamentares e técnicos presentes no encontro defenderam a realização de um acordo de cooperação técnica envolvendo a Condepe/Fidem, Alepe e os órgãos do Ceará.